Domesticação animal como emergência biotécnica

Pretende-se reinvestir na ideia de domesticação enquanto sistemas variados de relações emergentes. Busca-se mobilizar a partir da etnografia uma abordagem de humanos e animais centrada em processos, técnicas e afetos, de modo a superar o foco estrito em espécies, em estados substantivos ou na dicotomia entre controle e autonomia. Para tanto, serão discutidas situações como catividade, feralidade e familiarização, mas abarcando também humanos, sociedades, artefatos e ambientes.

Guilherme Sá (UnB)

Coordenador
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Livres ou à l´attache? Os sentidos e as técnicas da contenção na criação de vacas leiteiras (Entre França e Suíça)

Na definição clássica de domesticação animal, que embora constantemente criticada continua permeando muitas discussões, a questão do controle é um elemento central. Não é por nada que a melhor maneira de criticar e desfazer as bases dessa definição muito restritiva de domesticação é, em parte, de diminuir a omnipotência da agencia controladora humana e devolver aos diversos atores suas potencialidades e capacidades de ações e escolhas. São esses movimentos que permitiram que domesticação adquire um sentido mais próximo de uma coevolução, assemblagem, ou de compartilhamento.

Porém, como aponta Carole Ferret esse movimento tem certos limites e não deve se invisibilizar nos processos domesticatorios as assimetrias inerentes a essas relações e as ações de tipo contenção, fundamentais pelo menos numa parte imensa das relações com os animais. Minha proposta nessa apresentação, a partir da proposta de antropologia da ação de Ferret, é justamente de analisar as técnicas de contenção (em termo espacial e temporal) num exemplo etnográfico onde ninguém duvidaria que se trata de uma relação de domesticação qualquer que seja a definição escolhida (criação de vacas leiteiras na França e na Suíça). O intuito não é de recolocar a dominação como definição de domesticação, mas de olhar as escolhas técnicas em jogos nas relações de negociações, de orientações, limitações para o outro fazer ou não fazer determinadas ações desse assemblage que são os sistemas domesticatorios centrado na produção leiteira. As escolhas e transformações técnicas, a mediação pelos objetos técnicos, presente nesses momentos de antropo-zoo-genesis (Despret) que organizam as possibilidades de movimentos e as escolhas dos animais e dos homens nas suas ações permitam de fazer aparecer a complexidade desses assemblages e socialidade multiespecie, e de fazer emergir a contenção nao como a dominação de definição clássica, mas como um momento importante da construção de um mundo comum entre criadores e animais.

Criar água: domesticação e emergência de formas de vida na piscicultura

A criação de peixes com fins alimentares vem aumentando em grande velocidade, inclusive no Brasil. Fronteira significativa de produção de proteína animal, a piscicultura representa um vasto fenômeno contemporâneo de domesticação, em escalas e formatos diversos, permitindo que se repense pressupostos e paradoxos desta noção crucial para compreender a relação entre humanos, animais e plantas. Sem negar a centralidade do interesse humano, é preciso assumir a limitação das ideias estritas de domínio, controle e proximidade, dando atenção a outras agências e mesmo a fenômenos que apontam influências mútuas, inclusive os que estão para além da interação direta entre humanos e peixes, incluindo o espaço, que é o domus onde este processo se concretiza. A partir de duas etnografias sobre as reconfigurações implicadas na recente propagação da piscicultura de espécies nativas brasileiras, enfocaremos o processo básico de “criar água”. Esta atividade envolve gerar e manter as propriedades físico-químicas de um meio aquático, de modo que sejam favoráveis à conexão entre certos processos vitais de diferentes seres. Ao mesmo tempo que caracteriza um recinto de catividade, a criação de água mobiliza habilidades, valores, objetos técnicos e operações que transformam, impedem, convergem e compatibilizam diversos processos entre peixes e humanos (mas também de predadores, microorganismos etc.). A criação de água estabelece ressonâncias entre as dinâmicas metabólicas dos peixes e outros processos, como as redes de obtenção de rações e medicamentos e as de consumo ou escoamento da produção. É conveniente, portanto, pensar a partir da ideia de sistema domesticatório, pois ela permite dar conta das alterações orgânicas, das relações multi-espécies e da diversidade de comunidades híbridas, mas alcança também uma reconfiguração biotécnica mais ampla. Assim, o processo domesticatório não deve ser visto apenas como transformações biológicas (genéticas ou comportamentais) experimentadas por certas espécies. São antes o surgimento de sistemas de relações, protagonizados por certas espécies e por humanos, mas que os transcendem e abarcam inclusive os ambientes. Com isto, avançamos uma reflexão sobre a piscicultura a partir das reapropriações da domesticação na antropologia contemporânea, sublinhando o papel das técnicas na emergência de novas formas de vida, inclusive humanas. 

Gênese e morte de um sistema domesticatório: os porcos e as paisagens agrárias haitianas

Desde o trabalho pioneiro de Alfred Crosby, a historiografia colonial tem se debruçado cada vez mais sobre o lugar dos animais nas paisagens das Américas e do Caribe. Com efeito, cronistas e viajantes coloniais descreviam com um fascínio ambíguo a fauna e a flora nativas e suas interações com indígenas ao mesmo tempo em que registravam a chegada dos animais europeus e seu lugar na consolidação de uma economia de plantation. Descrito por Jean-Pierre Digard como “um aspecto desconhecido da história da América”, na primeira parte desta apresentação analiso fontes coloniais com a proposta de discutir a domesticação com uma atenção especial às técnicas e interações que deram origem a novos sistemas domesticatórios no continente americano. Se as criações animais, particularmente os porcos, possibilitaram a consolidação de uma economia de plantation, elas garantiram também a gênese de formas de vida pautadas em uma relativa autonomia que, com o passar do tempo, inspiraram demandas radicais por liberdade. Na segunda parte do texto, avanço no tempo para pensar a morte de um sistema domesticatório em um contexto etnográfico específico: o norte do Haiti. Com efeito, entre o final da década de 1970 e o começo dos anos 1980, funcionários de Estado e especialistas de diferentes nacionalidades desembarcaram no país com o objetivo de eliminar a totalidade dos porcos da ilha a fim de criar uma barreira sanitária para conter o avanço da peste suína africana. Conhecidos como porcos crioulos, sua morte é concebida por muitos dos meus interlocutores como o ‘fim da vida’. Pensando nas dimensões metodológicas que orientam este seminário, minha proposta é recuperar uma antropologia da técnica que mira exatamente a história da chegada de animais no Novo Mundo, refletindo sobre as implicações antropológicas de se pensar a história através da etnografia, atentando, nesse caso, para algo que já não está mais lá, mas que deixou marcas importantes nas paisagens técnicas, nas formas de vida e nos modos de se conceber o futuro.

Reencontrando al principito: el afecto como tecnología contra-domesticatoria

Al contrario de lo que sugiere la versión española de El principito (Saint-Exupéry 1943), el zorro nunca pidió que lo ‘domesticaran’. Lo que el zorro sugiere es que el Pequeño Príncipe lo puede ‘amansar’ (del francés: apprivoiser). De ese modo, ambos podrían ser recíprocamente ‘únicos’, y así ‘crear lazos’ (creer des liens) que implicarían una amistad negociada, pero nunca subyugación. En este ensayo sugiero que la desatención de los traductores españoles, que entienden ‘domesticación’ cuando se habla de ‘amansamiento’, es también una cuenta pendiente de la antropología que mira más allá de lo humano. Con contadas excepciones, también provenientes de la academia francófona (Digard 1988; Descola 2005,  Despret 2004; Erikson 1987), la etnografía multi-especies ha pivotado entre los análisis de los procesos de domesticación y las teorizaciones de lo salvaje. En ello, seguimos ajenos a la propuesta del zorro, a saber: la posibilidad de establecer relaciones con el otro no-humano basadas en la unicidad, el afecto, y la reversibilidad. En este ensayo revisito la propuesta hecha al principito a través de dos etnografías con mamíferos que, como el zorro, son altamente inteligentes: los delfines de río Amazónicos (Inia geoffrensis) y el jabalí Europeo (Sus scrofa).  Las variadas interacciones corporales-afectivas de estos mamíferos con humanos muestran que las relaciones inter-especies exceden los atributos taxonómicos distribuidos en especies salvajes y especies domesticadas. En relación a las personas, tanto los jabalíes como los delfines establecen, de manera individual, vínculos únicos y de afectos reversibles, advirtiendo de la potencial violencia que sigue a las amistades mal cuidadas. Sugiero pensar en los afectos entre especies como tecnología contra-domesticatoria, es decir, como orientación práctica y corporal hacia el otro-especie que reconoce la individualidad e invita a la cooperación, al tiempo que garantiza la restitución del desapego y la independencia para los organismos mal avenidos.

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*Todas as atividades serão públicas e gratuitas. Links serão disponibilizados antecipadamente.
**Sessões de Trabalho em português e espanhol.