Projeto de Pesquisa

Reconfigurações dos viventes entre a Amazônia e o Cerrado

Etnografia dos fluxos contemporâneos da heveicultura e da piscicultura
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O presente projeto realizou entre 2018 e 2022 uma abordagem comparativa de duas atividades que se intensificaram nos últimos anos no cenário brasileiro: a criação de peixes nativos com fins alimentares e a extração de látex a partir de plantios de seringueira. Através da abordagem etnográfica de diferentes tipos de empreendimentos de piscicultura e heveicultura, tratou-se de caracterizar as transformações na configuração de processos técnicos e processos vitais na Amazônia e no Cerrado, a partir de uma abordagem antropológica comparativa da relação com espécies vegetais e animais. Na segunda parte, foi integrada uma nova linha, abarcando também o recente cultivo de açaí com objetivos comerciais na região de Cerrado.

Atividades desenvolvidas

Pirarucu no Cerrado

Este projeto busca descrever e compreender o fluxo de pessoas envolvidas na vinda do pirarucu para o Cerrado, buscando notadamente observar a maneira como elas se conectam e se transformam em relação com este animal, viabilizando ao mesmo tempo sua disseminação. Interessam sobretudo as dinâmicas de aprendizagem e de geração de novas técnicas que possibilitam esse processo. Símbolo da Amazônia há séculos, muito utilizado ao longo de toda a ocupação daquela região, o pirarucu é um peixe de grande porte (até cerca de 200kg e 3 metros de comprimento), que passou a ser mais amplamente incluído na piscicultura e estudado para este fim desde o final do século XX. Além do tamanho, tem uma conversão alimentar extremamente favorável e rusticidade, isto é, capacidade de suportar ambientes pouco oxigenados e de baixa qualidade da água. Na última década pisciculturas passaram a adotá-lo na região de Cerrado, inclusive no Distrito Federal e na RIDE, com variados propósitos e perspectivas. Grandes criadores o utilizam como tentativa de se desenvolver numa atividade promissora economicamente, mas como criação acessória a outras espécies. Pequenos e médios criadores em geral o utilizam juntamente com outras espécies, com o objetivo de realizar testes. E há inclusive o uso chamado por muitos de “ornamental”, isto é, para fins lúdicos ou recreativos, não exatamente comercial. Em comum a todas estas situações está o fascínio exercido pelo pirarucu, em função de seu porte, sua respiração aérea, seu formato e característica de predador. Mas, associado à criação, começa a despertar também o alerta para o risco da disseminação do pirarucu como espécie exótica. Nos rios de São Paulo esta situação já se apresenta como uma controvérsia amplamente conhecida. No Lago Paranoá imagens do peixe tem circulado pela internet há certo tempo, comprovando sua migração para este novo ambiente.

Carlos Emanuel Sautchuk
Professor do Departamento de Antropologia da UnB
Coordenador do Laboratório de Antropologia da Ciência e da Técnica

Currículo Lattes

Reconfigurações contemporâneas da heveicultura entre a Amazônia e o Cerrado

Esta investigação tem como objetivo compreender as reconfigurações contemporâneas da heveicultura, ou cultura da seringueira (Hevea spp.), entre seu bioma de origem, a Amazônia, em especial na região da Amazônia ocidental, e o Cerrado, em especial na RIDE-DF, que engloba a região de Goianésia-GO, atualmente o segundo maior polo deste cultivo no Brasil. Com base em um investimento etnográfico nas duas regiões nos últimos 4 anos, é possível refletir sobre os tipos de mediações que tornam possíveis dois tipos de heveicultura muito distintos: por um lado, plantios agroflorestais implantados em áreas degradadas no estado do Acre, difundidos tanto entre seringueiros extrativistas que conhecem a seringueira do “mato” quanto entre colonos e assentados. Por outro lado, a implantação desde os anos 1990 de uma heveicultura industrial, na maior escala que existe no Brasil, no cerrado goiano, que tem “transbordado” para escalas cada vez menores nos últimos anos, trazendo questões para a organização do trabalho de extração do látex. Em ambos os casos, interessa fazer ver a mediação de técnicos e consultores especializados, em diálogo com os saberes de extrativistas, agricultores e trabalhadores rurais.

Eduardo Di Deus
Faculdade de Educação – UnB
Currículo Lattes

Criação de peixes amazônicos no Cerrado

A criação de peixes vem nas últimas décadas ganhando proeminência enquanto um segmento promissor para a produção de proteína animal, inclusive no Brasil. Desta maneira, as diversas escalas e formatos que pisciculturas assumem, configuram um importante fenômeno contemporâneo de domesticação animal, através do qual torna-se possível investigar etnograficamente as contingências em que humanos, animais e os espaços em que estas relações se sustentam, acontecem. Entre os biomas Amazônia e Cerrado, diferentes condições socioecológicas modulam a escolha por diferentes espécies de peixes a serem criadas (nativas ou exóticas), as quais por sua vez levam a diferentes protocolos de criação. Durante a pesquisa de campo, notou-se a importante influência exercida por ao menos três grupos de profissionais na promoção de certos pressupostos que deveriam orientar piscicultores iniciantes em suas escolhas: técnicos extensionistas conectados a EMATER-DF; técnicos consultores conectados ao SENAR-DF e representantes comerciais de produtoras de ração animal. Em meio as influências destes atores, velhos piscicultores e aqueles recém ingressados no ramo buscam equilibrar suas próprias experiências com os diversos elementos envolvidos no empreendimento piscícola, e.g. água, espécies, hibridizações, rações, e suas próprias expectativas no segmento com as recomendações e expectativas destes três atores externos. Ao mesmo tempo, desenrola-se uma disputa de espaço entre a tilápia, com um “pacote tecnológico” consolidado, e as espécies amazônicas, com diversos desafios em aberto.

Bernardo Peixoto Leal Ferreira da Silva
Mestre em Antropologia Social pela UnB
Currículo Lattes

Açaí no Cerrado

O açaí em touceira (Euterpe Oleracea Mart.) é uma das espécies de palmeira nativas da Amazônia, bastante comum em áreas de várzea e igapós, que apresenta produção sazonal. Seu fruto constitui hoje um dos principais produtos da biodiversidade brasileira, haja vista sua caracterização como “super alimento”. Embora sua produção seja basicamente de caráter extrativista ou feita através do manejo de plantas nativas, a crescente demanda pelo fruto tem incentivado cada vez mais áreas de cultivo e o desenvolvimento de variedades para terra firme com promessa de safra anual. Iniciada em julho de 2022, esta pesquisa buscou rastrear dois caminhos que o cultivo de açaí vem tomando no Cerrado. Por um lado, a trilha aberta por uma pioneira nesta produção no âmbito do Distrito Federal (dona Aida Kanako), trilha esta que já se desdobra tanto na coleta, como no processamento do fruto, tendo em vista um abastecimento local; e, por outro, um roteiro projetado por uma grande iniciativa de desenvolvimento regional (a Rota da Fruticultura da RIDE-DF), que ainda se encontra em etapa inicial, mas já mobiliza promessas de grande expansão e expectativas de produtividade voltadas ao atendimento de um mercado internacional. Cada uma dessas histórias de/em produção – a do “açaí daqui” e a do “açaí berry”, respectivamente – concorrem, a partir de reconfigurações técnicas e vitais diversas, para dar vida ao que vem sendo chamado de “açaí do Cerrado”.

André Gondim do Rego
Professor do Instituto Federal de Brasília, Campus Gama
Currículo Lattes

Resultados e publicações

O projeto tem diferentes resultados comparativos, sendo alguns deles já apresentados publicamente, conforme abaixo. A principal publicação está no prelo, o livro “Reconfigurações do técnico e do vivente entre a Amazônia e o Cerrado”, organizado por Carlos Sautchuk e Eduardo Di Deus. Abaixo seguem resultados já disponíveis:

Referências bibliográficas:

• Sautchuk, C. E. Os antropólogos e a domesticação: derivações e ressurgências de um conceito. In: Segata, Jean; Rifiotis, Theofilos. (Org.). Políticas etnográficas no campo da ciência e das tecnologias da vida. 1ed.Porto Alegre: ABA Publicações, p. 85-108.

• Dissertação de mestrado defendida: “Criar, reproduzir, converter: domesticação e imprevisibilidade em pisciculturas no Cerrado”. Orientação de Carlos Sautchuk, autoria de Bernardo Peixoto Leal Ferreira Silva.
https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/38549/1/2019_BernardoPeixotoLealFerreiraSilva.pdf

• Di Deus, E. Artigo “A árvore que responde: amansando a seringueira”, submetido à Revista Vibrant – Virtual Brazilian Anthropology.
https://www.redalyc.org/journal/4069/406959818034/

• Carlos Sautchuk e Bernardo Leal apresentaram o trabalho “Criar água: domesticação e emergência de formas de vida na piscicultura” em evento científico, a ser publicado em breve como capítulo de livro:
http://lactunb.com.br/transtec/sessao-de-trabalho-2/;

• Eduardo Di Deus publicou o artigo “Travailler avec l’arbre qui saigne”.
https://journals.openedition.org/rac/26574