Processos espaciais e compatibilização ecológica
A dimensão espacial das atividades técnicas e dos processos vitais tem despontado em etnografias contemporâneas a partir de variações em torno da paisagem, do ambiente e do território. Revigorado pela experiência do habitar, dinâmicas dos viventes e mediações técnicas, o tema do espaço pode fornecer outras escalas empíricas para a antropologia, inclusive com aproximações metodológicas entre etnografia e geografia. Esta sessão aposta no caráter processual do espaço como forma de renovar abordagens sobre manejo, gestão e outras situações de compatibilização ecológica.
Viviane Vedana (UFSC)
Coordenadora
Henyo Barreto (UnB)
Debatedor
A vida dos corredores rurais: elementos para uma hodologia vernacular da pecuária sulina
Esta apresentação propõe uma apreensão hodológica da paisagem pastoril do sul do Brasil, tendo como foco a vida e os usos de suas estradas rurais. Por hodologia (do grego, odos, caminho), compreendo o estudo das estradas e caminhos que constituem um domínio territorial, tal como conceituado pela geografia cultural e a antropologia da paisagem de inspiração fenomenológica. Neste sentido, a apresentação dá continuidade à discussão que efetuei em outros trabalhos sobre a arquitetura da domesticação da pecuária pampeana. Agora, porém, desloco o enfoque dos alambrados para os corredores – isto é, das cercas de madeira e arame que cortam a Campanha, para os caminhos vicinais que correm entre elas, ao largo e no interior das propriedades rurais. A partir de uma breve narrativa etnográfica, a apresentação desenvolve os seguintes tópicos: as conexões entre mobilidades mais-que-humanas, toponímia e topologias vernaculares da paisagem pastoril sul-brasileira e platina; a produção do parentesco e da vizinhança por meio do compartilhamento dos mesmos caminhos ao longo de gerações; a hodologia como uma alternativa teórica e metodológica às apreensões estáticas e objetivistas da paisagem e do meio. Indo além desta orientação predominantemente fenomenológica, concluo a apresentação explorando certas desigualdades e tensões sociais ligadas à dicotomia campo/corredor nas práticas e nos imaginários locais.
Combustível digital: transduções e espacialidades do fogo no cerrado
Uma derivação da antropologia da técnica menos explorada atualmente – se comparada ao tema dos gestos e escolhas técnicas, por exemplo – consiste na tecnogênese do espaço. Em alguma medida decorrente das críticas de base fenomenológica (Ingold, 2015), ainda é pouco expressiva a atenção dos antropólogos ao caráter fenomenotécnico (Bachelard, 2005) do espaço geográfico, isto é, enquanto “um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações” (Santos, 2009). A apresentação buscará fornecer uma contribuição etnográfica a este debate interdisciplinar, partindo de minha pesquisa sobre os usos e percepções do fogo em áreas protegidas do Cerrado (Fagundes, 2019). Nesse contexto, o conceito de combustível digital reporta principalmente ao capim agreste seco quando captado por sensores satelitais. A conversão desta vegetação em imagens-mapas digitais orienta as ações de combate a incêndios e a execução de queimas preventivas por gestores ambientais e brigadistas. Ao alterar a escala e resolução da vegetação passível de ser queimada, possibilitando “ver o (capim) cru sem conhecer a área”, os mapas de combustível também se fazem de canal de comunicação pragmática (Almeida, 2013) entre os engajamentos pastoril, venatório e conservacionista com o fogo no Cerrado. A apresentação buscará retratar esta digitalização da vegetação combustível enquanto operação transdutiva (Helmreich, 2009; Simondon, 2005), ou seja, um processo de conversão de variações em meios distintos. No caso, a conversão de formas de vida vegetal em assinatura espectral e desta última em tonalidades de pixels que compõem imagens-mapas. Serão abordados os sensores, suportes, procedimentos e propiciações dos mapas de combustível em ato, particularmente quando visualizados em campo através de aparelhos celulares. Meu objetivo é demonstrar como que, ao alterar os affordances (Gibson, 1986) da vegetação e a capacidade de ação junto ao fogo, esta cadeia transdutora também institui um novo espaço geográfico.
Habitar el páramo: ontogénesis territorial en paisajes inestables
Desde 2015, foi desenvolvido um Plano de Vida em alguns municípios do norte do Equador, que consistiu em um desenho de ordenamento do território baseado, por um lado, na visão de mundo Kayambi e, por outro, em contribuições técnicas, na topografia, tipos de solo, agronomia e sistemas de informação geográfica, com a participação dos camponeses, o governo autônomo descentralizado da cidade de Cayambe e a Universidade Politécnica Salesiana. Partindo de um relato etnográfico, este trabalho se propõe a refletir sobre os processos técnicos desenvolvidos entre os habitantes do páramo andino, a partir de dinâmicas de configuração espacial no Plano de Vida. Primeiramente, são discutidas algumas críticas às noções objetivistas de espaço na geografia e na antropologia, em particular, a partir da noção de territorialidade e possibilidade geográfica. Porém, posteriormente se mostra que essas abordagens são insuficientes para dar conta de configurações territoriais além do humano, considerando a incidência de artefactos, animais, entre outras entidades sobrenaturais típicas do páramo andino. Por fim, a partir de uma interface teórico-metodológica, propõe-se uma articulação da noção ingoldiana de habitar ou dwelling, a temporalidade da paisagem e a noção de representação social (sensu Lemonnier) como forma de lançar luz sobre o surgimento da vida e da técnica refletida na o território andino para além de uma abordagem culturalista. O argumento é que, se o habitar depende da percepção, e se a percepção ultrapassa os limites da pessoa-organismo, então habitar o ambiente envolve uma ontogênese territorial de natureza analógica entre os camponeses e o páramo.
Entre madeiras, paus e mudas: a arte de revitalizar paisagens mutiespecíficas entre os Pataxó, no sul da Bahia
Esta comunicação trata da composição entre práticas de humanos e não-humanos no tecer paisagens multiespecíficas no território do povo indígena Pataxó, no Monte Pascoal. Trata-se, também, de um elogio à poética ameríndia de revitalizar e reviver paisagens arruinadas e devastadas por séculos de cercamento das terras e implantação das plantations contemporâneas na região da Mata Atlântica. Caminhando pelas trilhas do território Pataxó e atento aos ritmos coordenados das intra-ações entre diferentes vidas pude descrever as tecnoesferas que enredam os modos de habitar a terra dos Pataxó e seus entrelaçamentos com performatividades das plantas, animais, terra, encantados, fazendeiros, engenheiros florestais e fiscais de parques. Abordarei uma descrição etnográfica critica sobre as técnicas de fazer crescer e fazer viver presente nos modelos relacionais deste povo em experiencias de abrir lugares, retomar terras e ressurgir florestas, numa reflexão sobre os rompimentos com dualismo entre exótico e nativo/natureza e cultura, trazendo a tona os processos ontogenéticos e processuais da construção da diferença no mundo. Argumento que os Pataxó vem continuamente tecendo e refazendo suas esferas técnicas de perturbação/ressurgência da paisagem em acoplamento com outras forma de vida, tendo como premissas o que Anna Tsing denomina de modelo ressurgente ou “holocênico” na relação entre pessoas e ambiente.
*Todas as atividades serão públicas e gratuitas. Links serão disponibilizados antecipadamente.
**Sessões de Trabalho em português e espanhol.