A morte e as formas de vida na caça
A morte é um aspecto incontornável da caça. Mas isto deve ser tomado como questão, inclusive para se compreender as formas de vida de animais, humanos e outros entes nela envolvidos. Bastante mobilizada no plano teórico e na história da antropologia, esta sessão aborda a caça como tema etnográfico atual, com foco no ato cinegético. Para tanto, o caráter ético, a comunicação e a intersubjetividade interespecíficas ali presentes aparecem associadas a transformações significativas, que vão desde novos equipamentos e métodos, até os impactos de proibições legais e do desmatamento.
Clarisse Jabur (UnB)
Coordenadora
Felipe Vander Velden (UFSCAR)
Debatedor
Presa no caminho – modalidades de ação técnica na caça panará
O objetivo deste trabalho é examinar modalidades de ação técnica distintas que se encadeiam na caça ameríndia e assim contribuir para um entendimento do processo que resulta na captura do animal. Mais especificamente, observar os atos técnicos da atividade em sua relação com um conjunto de seres vivos e processos vitais. A partir do caso da caça entre os Panará, que vivem na região meridional da Amazônia, observo diferentes processos desencadeados pelo caçador para intervir sobre a vida das suas presas.
Para tanto, parto da descrição de um momento especialmente eloquente onde diferentes ações se desenrolam visando a predação: o acampamento de caça. Trata-se de uma espacialidade específica, que ocorre no período que antecede o ritual e onde se objetiva reunir animais abatidos para uma partilha coletiva. Um conjunto de operações são realizadas nos dias de acampamento para tornar a caça visível, ou “no caminho”, como diriam os Panará. Seguindo a ideia de “configuração agentiva” (Pitrou 2017; Coupaye e Pitrou 2018), examino a conjunção de agentes humanos e não-humanos que participam destas operações.
O percurso do texto parte do caçador e sua corporalidade, enquanto capacidades e habilidades para atos técnicos eficazes. Toda pessoa é animada por uma vitalidade singular, impermanente, que deve ser motivada, e que tem um efeito estético, além de ser importante na caça. Em seguida, identifico outro conjunto de ações que vem povoar o sistema técnico da caça, as operações xamânicas que permitem agir à distância ou solicitar a intervenção de não-humanos. Na sequência, abordo o conjunto de relações ecológicas onde o caçador se insere. E aqui meu intuito é descrever a busca dos caçadores panará em situar-se na vizinhança, paralelos e no encalço dos rastros vitais de suas presas.
O texto sugere que é preciso alargar o sentido da caça entre os povos ameríndios para além do ato de morte e recusar sua captura pela gramática da produção e do trabalho, para que seja possível observar na atividade múltiplos processos vitais.
Práticas venatórias entre os Tabajara do Litoral Sul da Paraíba: transformações técnicas, etnicidade e gestão de fluxos vitais
A presente comunicação tem como foco as atividades de caça realizadas no Litoral Sul da Paraíba e suas transformações ao longo do tempo, em decorrência de fatores como a fiscalização ambiental por agentes do Estado, a introdução de inovações técnicas e, a partir de meados dos anos 2000, a manifestação de processos identitários indígenas na região em tela.
O Litoral Sul da Paraíba é conformado por áreas de manguezais e tabuleiros cobertos por Mata Atlântica, bem como pelo estabelecimento de latifúndios, granjas, sítios, assentamentos rurais e conglomerados urbanos com significativas instalações turísticas.
Há que se dizer que neste contexto sócio-ecológico-territorial, atualmente configurado, existe ainda uma vívida prática venatória que, todavia – em decorrência da Lei 5197, de 1967, que proíbe a caça, salvo em situações específicas -, tornou-se clandestina, excogitando-se estratégias e realizando-se escolhas técnicas que permitam a sua realização. Passou-se assim a se privilegiar a caça por via indireta, através de armadilhas, e aquela direta, com uso de espingardas, tornando-se ela principalmente noturna, através da organização da denominada espera, constituída por jiraus e por cevas, acomodados em pontos específicos nas varedas (redes de trilhas percorridas pelos animais que se almeja capturar). Esta atividade passou a ser favorecida pela inovação técnica representada pela introdução da lanterna elétrica, a possibilitar uma iluminação imediata, garantindo ao caçador uma percepção visual mais adequada.
Outro elemento a ser considerado é o fato de que parte da população da região passou recentemente a afirmar sua identidade como indígena Tabajara, com a FUNAI tendo inclusive iniciado o processo de identificação e delimitação de duas terras indígenas. Assim, embora o processo demarcatório ainda não esteja concluído, os Tabajara reivindicam o direito à caça, garantido pela Lei 6001/73 no interior de territórios indígenas, tentando assim reverter a condição de clandestinidade.
É focando este jogo de relações e transformações técnicas que mostrar-se-á como animais, caçadores e agentes fiscalizadores formam espaços dominiais construídos através da percepção mútua dos rastros que cada um deles deixa nos ambientes que habitam, possibilitando modalidades específicas de gestão dos fluxos vitais impulsionados por suas recíprocas interações.
Como as florestas falam: pensando a caça e a conservação no Leste Amazônico
Esta apresentação parte do fato de que a caça amazônica é marcada por intercâmbios interespécies, e esses intercâmbios estão cada vez mais ameaçados pela destruição ambiental. As formas de conhecer desenvolvidas durante séculos por caçadores e caçadoras revelam, por um lado, um profundo conhecimento sobre as plantas, animais e a vida, e por outro, aponta para elaborados aparatos perceptivos e comunicacionais capazes de transpor a barreira de incomunicabilidade entre diferentes espécies. Tanto os Awá-Guajá do Maranhão (coletivo com quem mantenho um diálogo de pesquisa) quanto diversos povos da Amazônia pensam o “caçar”, isto é, o ato mesmo de estar na floresta rastreando, perseguindo e matando animais, pelas vias da percepção e das dissonâncias perceptuais. Seguindo as ideias dos meus parceiros de pesquisa, sugiro que, uma das formas de estudarmos a caça na Amazônia Indígena, é nos apoiarmos naquilo que nossos interlocutores de pesquisa não dizem. A caça aqui é entendida como a arte do “escutar”, do “imitar”, do “enganar”, onde os odores e os silêncios ressoam mais do que palavras. E todo esse outro idioma, é também uma tecnologia capaz de conectar humanos e seres outros-que-humanos. Se o que caracterizaria a caça amazônica é essa “longa história multiespécie” (para usar a feliz expressão de Octavia Butler), tal história, apesar de não estar escrita, é repleta de onomatopeias, urros, murmúrios, chiados, emulações diversas e toda uma sorte de formas que conectam e desconectam aqueles que matam e aqueles que são mortos. E, como sabemos para a caça amazônica (indígena e não-indígena), nem sempre os humanos são os predadores e os animais são a presa. Contudo, caçadores especializados, como os Awá-Guajá, se deparam hoje com uma mudança radical em sua paisagem, fruto de uma série de violências que são materializadas nas invasões e desmatamento de seus territórios. A conservação e a preservação da floresta são evocadas como importantes não para si, mas sobretudo para os seus habitantes não-humanos, sobretudo os animais, e a ideia de “cuidado” é uma outra importante ferramenta analítica e de ação que é mobilizada pelos meus parceiros e interlocutores de pesquisa. A caça indígena sul-americana e seu duplo vínculo que conecta pessoas e animais através de relações que passariam ora pela criação (de filhotes, por exemplo), ora pelo abate de adultos da espécie, ocorre hoje em paisagens cada vez mais destruídas e ameaçadas, que além de todo o passivo ambiental, também destrói as formas de conhecer e comunicar que marca esse complexo sistema de conhecimento na região. A proposta dessa comunicação é discutir esses entrelaçamentos.
Espingardas, laços e tatuzeiras: caça, ética e técnica no sertão cearense
Tendo por base pesquisa etnográfica realizada desde 2013 em dois municípios do sertão cearense, esta comunicação discute a ambiguidade moral do emprego de algumas técnicas de caça para matar e capturar animais. Os interlocutores desta pesquisa são ‘moradores’ (trabalhadores rurais agregados) e pequenos proprietários que têm na caça uma forma de lazer e de sociabilidade, mas que contam decisivamente com as matas e seus bichos para alimentar suas famílias. Um pressuposto da argumentação é de que, na medida em que a tecnologia não é um domínio independente da vida social, as reflexões e as problematizações éticas sobre as relações dos seres humanos com outros viventes e com o ambiente podem influenciar decisivamente as técnicas utilizadas pelos caçadores. Com esse intuito, tomo como foco a ‘espera’ com armas de fogo aos veados (Mazama spp.) e o uso de duas armadilhas de caça: o ‘laço’, também usado para caçar veados, e a ‘tatuzeira’, empregada para capturar vivos tatus (Dasypus novemcinctus) e pebas (Euphractus sexcinctus). Em um primeiro momento, discuto brevemente as concepções nativas sobre o estatuto dos animais não humanos, destacando a sua ‘inocência’ e a ‘defesa’ característica de cada espécie. Isso abre margem, de um lado, para apontar o importante pressuposto ontológico sertanejo segundo o qual ‘todo vivente tem o dono dele’, mas também, de outro, que a relação entre o caçador e a presa é uma relação entre dois sujeitos éticos, embora com diferentes possibilidades de ‘entendimento’. Em seguida, descrevo aquelas modalidades de prática venatória e discuto as controvérsias sociotécnicas e os dilemas éticos que as atravessam, seja em razão da caça excessiva, do sofrimento infligido aos animais ou mesmo da displicência de alguns caçadores no trato com os bichos. O foco da comunicação, portanto, é o processo da atividade cinegética em si com o objetivo de apontar as problematizações éticas que circulam o emprego daquelas técnicas.
*Todas as atividades serão públicas e gratuitas. Links serão disponibilizados antecipadamente.
**Sessões de Trabalho em português e espanhol.