Apresentação

Quais as imbricações possíveis entre técnica e vida no mundo contemporâneo? Em que medida elas se relacionam com as transformações planetárias em curso? Como estas imbricações desafiam nossos conhecimentos e nossas relações com animais, plantas e seus ambientes? Participar deste debate urgente a partir da antropologia implica em dois movimentos: uma reflexão crítica sobre os pressupostos subjacentes às ideias de vida e técnica e a abertura empírica para captar novas formas de existência e de relação. De um lado, precisamos nos afastar de uma concepção antropocêntrica, instrumental e assimétrica da técnica enquanto tecnociência, como a aplicação do conhecimento e da intenção humana sobre a natureza. De outro lado, também se faz necessário interpelar o vivo desde suas operações e potencialidades, colocando em suspensão uma noção de vida com limites e propriedades dadas previamente. Evitada a fixação sobre os produtos (objetos ou espécies) que resultam da associação entre tecnodiversidade (Hui, 2020) e biodiversidade, aparece então o desafio de como redirecionar a atenção etnográfica para os processos ou gêneses de determinadas configurações ecológicas. 

A concepção de técnica que inspira este seminário vem da antropologia (Mauss, 2006, Sautchuk, 2017) e se afasta do utilitarismo para ressaltar as relações entre seres, ambientes e objetos. Isto significa tratar a técnica como um fato da vida (Canguilhem, 2000), isto é, como o conjunto variado e criativo de compatibilizações que organismos humanos e não-humanos estabelecem em associação com o meio (Fagundes, 2019). A partir disto a segunda edição do TRANSTEC se abre para renovações que vêm surgindo nos últimos anos na antropologia em torno da vida. Indo desde proposições semióticas (Kohn 2013), passando por vertentes pragmáticas (Pitrou, 2015; Coupaye, 2017), alternativas fenomenológicas (Ingold, 2011), além de abordagens sensoriais (Meyers, 2019) e cinematográficas (Castro et al, 2020). Explorando as interfaces entre estes campos antropológicos, o seminário se organiza articulando dois propósitos correlatos. O primeiro compreende a relação entre técnica e vida como eixo temático, já o segundo explora os desafios metodológicos e analíticos representados pela imbricação destes processos na etnografia. 

No nível temático, o seminário convoca o debate entre pesquisas que se dedicam a compreender as imbricações entre atividades técnicas e processos vitais em situações contemporâneas reunidas em quatro eixos: (1) a vida vegetal e seus modos de ação, (2) domesticação animal como emergência biotécnica, (3) a morte e as formas de vida na caça e (4) processos espaciais e compatibilização ecológica. No nível metodológico, o seminário busca prospectar novas disposições do fazer antropológico em sintonia com este tema. O desafio é então o de recalibrar a sensibilidade da etnografia, tendo em vista que ela também deve estar sensível e compatível com determinadas configurações ecológicas que associam modos de ação e processos vitais A variedade de reações possíveis a essa necessidade de compatibilização nos permitirá trazer para a discussão não apenas a dimensão da aprendizagem, que é comum a muitas etnografias, como também, e sobretudo, as modalidades de mediação técnica ou coordenação (Sautchuk, 2012) entre o que se busca perceber e como se percebe. Assim, o enfoque do seminário se volta para os desafios, limites, especificidades e, sobretudo, inovações que emergem destes dois movimentos, um temático e outro metodológico, ligados às imbricações etnográficas entre técnica e vida e suas transformações contemporâneas.

Referências bibliográficas

CANGUILHEM, G. 1965. 2000. “La question de l’écologie. La technique ou la vie”, conférence prononcée à Strasbourg en 1973, publiée dans la revue Dialogue, mars 1974, p. 37- 44. In : F. Dagognet, Considérations sur l’idée de nature, Paris, Vrin, p. 183-191.

COUPAYE, Ludovic. 2017. Cadeia operatória, transectos e teorias: algumas reflexões e sugestões sobre o percurso de um método clássico. Pp. 475–94 em Técnica e transformação: perspectivas antropológicas, editado por C. E. Sautchuk. Rio de Janeiro: ABA Publicações.

CASTRO, Teresa; PITROU, Perig; REBECCHI, Marie (org.). 2020. Puissance du végétal et cinéma animiste – La vitalité révélée par la technique. Paris: Les Presses du réel.

DESCOLA, Philippe, e G. PÁLSSON. 1996. Nature and society: anthropological perspectives. Londres: Routledge.

HUI, Y. 2020. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu.

INGOLD, T. 2011. Being alive: essays on movement, knowledge and description. Londres; Routledge.

KOHN, E. 2013. How forests think: toward an anthropology beyond the human. Berkeley: University of California Press.

FAGUNDES, Guilherme Moura. 2019. Fire normativities: environmental conservation and quilombola forms of life in the Brazilian savanna. Vibrant, v. 16, p. 1-22.

MAUSS, Marcel. 2006. Techniques, Technology and Civilisation. editado por N. Schlanger. New York: Durkheim Press/Berghahn Books.

MYERS, Natasha. 2019. “From Edenic Apocalypse to Gardens against Eden: Plants and People in and after the Anthroposcene.” In Infrastructure, Environment and Life in the Anthropocene, edited by Kregg Hetherington, 115–48. Durham, N.C.: Duke University Press.

PITROU, P. 2015. Life as a process of making in the Mixe Highlands (Oaxaca, Mexico): towards a ‘general pragmatics’ of life. Journal of the Royal Anthropological Institute 21 (1): 86– 105.

SAUTCHUK, C. 2012. Cine-Weapon: The Poiesis of Filming and Fishing. Vibrant 9(2): 406–430.

SAUTCHUK, C. (org.) 2017. Técnica e transformação: perspectivas antropológicas. Rio de Janeiro: ABA Publicações.

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